Deserto

Eu havia deixado um bilhete sobre a cama, só. E muito bom, ao meu ver.
Caminhei até a porta, saí, fechei, desci as escadas, fui em direção à garagem, abri, fechei, botei o novo do Jamiroquai pra rodar e fui. Mais no som do que na cabeça, não era tão bom assim, mas tudo bem.
Rodei, rodei, uns 70 km fácil.
Blue Skies já estava no repeat a essas alturas. Sempre gostei de singles. Todos gostam dos singles. Só escolhem as alternativas como favoritas porque isso demonstra conhecimento, aquela velha história do status, poder.
Eu estou cansado dessa balela toda. De toda essa futilidade social.
Pura merda.
Chega a ser engraçado como as pessoas necessitam de afirmação. Como buscam nos outros a confiança que não possuem. E como acreditam que são felizes.
Até que as coisas mudem. Que o dinheiro falte. Alguém vá embora.
Aí, tudo vira lamento, tristeza.
É patético.
Quase todas as vidas estão depositadas sobre falsas relações, falsos sentimentos. Tudo é tão falso e tão aceito. São os modelos do “bem viver” ao qual todos estão presos, que todos pregam.
Os sentidos estão presos em carros, roupas, filmes, bebidas, conversas, trabalho, exercício físico, livros, universidade, música, comida, futebol, internet, dinheiro... Todos os sentimentos são ligados a isso.
A coisas, a pessoas, aos lugares.
As pessoas depositam suas vidas aí.
Até que adoecem, jogam blasfêmias ao ar, acreditam ter encontrado um novo sentido, vivem ou morrem.
Simples assim.
Falso assim, superficial assim, também.
Parei no km 371.
Saí, fechei, caminho.
Está quente, deserto, claro e seco.
É uma bela manhã.
Sinto que a vida, enfim, vale a pena. Aquela rápida sensação que explica tudo e nada. Dá um sentido e vai embora. Mas que sempre volta em uma curva ou outra, pra quem sabe enxergar.
Para aqueles que não estão entorpecidos demais.
Se tem algo que eu gosto de verdade é de caminhar sozinho. Em qualquer lugar, em qualquer hora. Só eu, meus pensamentos, e eu.
E isso é um ponto fundamental para o pandemônio silencioso que aí está, as pessoas não se bastam.
Há sempre uma procura por algo, alguma coisa, que está além de si mesmo, fora, a ser descoberto e conquistado.
Patético.
E no fim, pode ser que exista só dois tipos de pessoas mesmo. Os filhos de Abel e de Caim. Aquelas que prestam para a sociedade e aquelas que não prestam.
As aceitas para existir. As escolhidas para contestar.
Nem que para isso, deva-se matar o próprio irmão.
Enfrentar, renitente, o destino que couber.
Eu aceitei o meu.