Parede


Eu tenho uma parede na minha casa. Uma parede diferente, é lógico.
Toda noite, quando chego da fábrica, eu escrevo uma palavra nela.
Uma palavra qualquer, a primeira que vem na cabeça mesmo, sem rodeios. Já passo o dia agindo como uma máquina, com a parafusadeira laranja na mão e eu odeio laranja. E não vai ser antes de dormir que eu vou pensar.
Então, eu só pego a caneta esferográfica preta, escrevo e pronto. Só tem uma coisa, eu nunca leio o que eu escrevo ou o que eu já escrevi.

Nunca.

A parede é como um cofre, trancado de mim.
No início, eu deixava uma cortina na frente. Temia descuidar e me perder em seus segredos, nos meus segredos. Porém, com o tempo, aprendi a controlar meus impulsos.
Se tem uma coisa que uma parafusadeira ensina é a controlar os impulsos. Os 3 anos que trabalho como operário me legaram, além de uma parede, um belo autocontrole.
No passado, fiz certas coisas as quais não me orgulham nem um pouco. Aprendi a não pensar sobre elas, a não tocá-las. E o trabalho como operário ajuda nisso.
O concreto frio, o regramento das horas, a mecânica do movimento repetitivo, adocicam o fulgor amargo do corpo. Sem contar que a falta de convívio social me agrada. Eu chego, bato meu ponto, aparafuso meus parafusos, bato meu ponto e vou embora.

Direto assim mesmo.

Operário, em geral, é tudo burro. Eu sou exceção.
Tenho estudo e gosto de ler. Literatura que não me faça pensar, que fique claro.
Pensar não deu muito certo na minha vida, mas isso não vem ao caso.
Acontece que agora de noite, como de costume, a parede ficou um pouco mais preta, um pouco menos branca.
Escrevi a palavra “não” no canto inferior esquerdo. A parede já tá cheia pra caramba, mas sempre tem um espacinho.

Escrevi grande hoje.
Escrevi feio como sempre.

Tenho a impressão que já escrevi essa palavra essa semana.
Não sei.
Vou é dormir porque amanhã começa tudo de novo. E a palavra eu vou esquecer mesmo, como sempre esqueço.

Já disse que eu não penso, nem a parede.

7 comentários:

Isabella M. Heemann | 20 de junho de 2011 às 17:56

Po, Thales. Bom, muito bom mesmo! Dá gosto de ler. Sério, mais uma vez caiu muito bem no meu dia!

Pricilla Farina Soares | 20 de junho de 2011 às 19:26

Não pensa. Sente.

Ótimo texto, Thales!

Já li outros do teu blog mas não havia comentado. Gosto bastante das tuas temáticas criativas e do detalhamento não tanto dos personagens, mas dos objetos que se fazem presentes na narrativa e que ganham vida.

=D

Thales Vieira | 20 de junho de 2011 às 21:12

Isa:
Que bom que tu gostou e, principalmente, que bom que serviu para o teu dia!
Te amo pequena.


Prici:
Fico muito feliz com um elogio teu, mesmo! Também acompanho o Palavras Ocultas, mas ainda não comentei, lembro de um texto teu que tu dividiu em "Parte 1" e "Parte 2". A sensibilidade que tu transmite, principalmente, no "Parte 2" me inspirou no "Memorando", tenho que te dar o crédito! hahahah
Beijos Prici!

gui | 20 de junho de 2011 às 23:18

Sensacional! Aliás, sensacional também o fato de que estás escrevendo com um pouco mais de frequência. Gosto muito dos teus textos.

Abraços!

Thales Vieira | 21 de junho de 2011 às 09:07

G.T.
Muito obrigado pelo elogio meu velho!
Fixei como meta a regularidade nesse blog, espero cumpri-lá o melhor possível!

Abraços!

Madruga | 21 de junho de 2011 às 15:02

Se a Parece fosse do Heinerich (que não é nenhum operário, mas creio que não pensa muito também) estaria escrito "Carol, Carol, Carol..."

Thales Vieira | 21 de junho de 2011 às 15:20

Madruga:
concordo plenamente! muito bom!!
hahahahahahah