Mer de Moi

Líquida, como o mar,
Passa, rápida, passa.
Um molusco a flutuar,
Mole, leve, de toda a suavidade.


Eu, rijo.


Crista, espelho, areia e espuma,
Bate e bate e bate.
Traga-me o infinito oculto,
O baú de tesouros há muito perdido,
Na breve curvilínea imensidão.
O sorriso, vai-e-vem.


Eu, torso.


Abre o torto bico áspero,
Que encerra o veludo branco-cinza-anis
E rasga pequenas latas de fugidio brilho.
Onde um é sempre dois ou três ou mais.


Eu, monolítico.


Ergue morna brisa,
Retalhos de lugares ao ar.
De cá para lá e de volta,
Carrega a fuligem de confusas partículas a enferrujar.
A redenção pela elevação dos que, sem ser caminho, caminham.
Onde mais são sempre três ou dois ou um.


Eu, inoxidável.


Vã contemplação humana do ininteligível, ousas
Racionalizar o sentimento, sentimentalizar a razão.
Olvidas tua escassa natureza,
Pois és centelha de vida, só.


Eu, me nego.

Prosopopeia pós-moderna

A cidade; olhos.
A mídia; boca.
A parede; ouvidos.
O mercado; pele.
O cárcere; nariz.

E o homem?
Máquina.

Ana fora

Cansada, Ana estava
De só rimar, de muito penar,
Dia a dia, carnaval a carnaval
No mesmo lar – limpar, limpar, limpar...
E o patrão? Rá, nem o escambáu!
Nesse lamaçal, te contentas,
Negra Ana,
És anáfora cotidiana.

Amanhã ser

Voltar; tornar; volver.
Revolver.
Revólver.
Na madeira, o grafite; no aço, a bala.
A alma fragmentada sobre o papel; o corpo rebentado sob a lua.
Estilhaços e rabiscos.


Morrer; viver; nascer.
Renascer.
Res-nascer.
O ser não volta a ser, e se ser é não é ser que já foi, pois morto está;
logo, ser apenas agora é e amanhã ser não mais será;
depois de não ser, não-ser.


Amanhecer não mais irá.

O almoço da rotina

A partir de hoje não almoçarei mais ao meio dia.
Nem antes, nem depois.
Na verdade, decreto o almoço abolido da minha vida.
Vou mudar de cores, de ares, de amores.
E nada melhor do que começar rechaçando esse emblemático hábito cinza do cotidiano.

Paradigma dessa sociedade cartesiana, regrada pelo relógio, refém de um mercado de trabalho espúrio, escravizador, compelindo todos, conscientemente ou não, a sucumbir diante de um prato de comida ao meio dia.
Pois, para sua informação, o símbolo de nossa época não é o relógio, muito menos a marca de uma empresa multinacional ou um eletrônico qualquer conectado a uma internet wi-fi.
Nosso símbolo mór é o santo almoço de todos os dias.
Essa prática asquerosa que transforma todo ser humano em gado, preso a um brete psicológico, submetendo nossa fisiologia a um regramento pseudo-necessário.
Se bem que, almoçar um fast food, ao meio dia, no McDonald’s, enquanto navega-se na web em seu celular high-tech é o suprassumo do aprisionamento ao século XXI.
E eu estou me libertando. Definitivamente.
Que venha a baixo a primeira barreira.

Grito aos quatro cantos: ALMOÇO NUNCA MAIS!


Eu só estou esperando meu turno de trabalho acabar agora pela manhã...

Nota Particular: Ser

Eu não quero enlouquecer.
Eu não quero perder o rumo, se é que ainda tenho um.
Preciso manter essa sanidade social disfarçada.
Por mais que todos nós estejamos doentes, loucos, insanos, eu não posso acordar.
Devo permanecer como eles.
Dopados.
A sensação de vertigem me alucina.
Não aguento mais sentir.
Ela brota por todos os poros, desenfreada, incontrolável.
Como estar sempre a cair, mas não bater em lugar algum.
Cair, cair e cair.
Sem fim, sem destino.
Se ao menos pudesse ser como antes.
Letárgico.
Acreditar que há um sentido em nascer, crescer, reproduzir e morrer.
Acreditar em um Deus.
Acreditar na humanidade.
Crer no que for.
Apenas, crer.
Nunca abrir os olhos.
Ou pensar que se abriram os olhos.
Permanecer na pelagem do coelho, na calmaria da consciência vã.
Mergulhar jamais.
Não ousar escalar.
Inerte na fé cega que move montanhas, e que já não me move.
Flutuar ao sabor do vento, o qual já não me sustenta.
Não sou mais um na imensidão sem cor.
Porém, ainda não sei quem sou.
Se, sou...









Ao percorrer o Estige,
perceberás que Caronte há muito abandonou sua lida.
Ouvirás o fulgor da correnteza a passar.
Verás muitos como tu, porém todos cegos, em lúgubre procissão.
Ao teu nariz, queimará o acre do enxofre.
Sentirás...


Não!
Não sentirás nada.

Pequeno Conto Soturno (3)

Porra, eu só não esperava esse cheiro à asa. Santa ingenuidade essa minha também, vou te contar. Era óbvio que uma pessoa que não conhece uma gilete, também não conhece um desodorante. E olha que, eu não sou um cara exigente, nem teria como né, gorda e de bigode até vai, agora gorda, de bigode e com asa, aí já é demais. Até pra mim, é demais. Dei uns três passos pro lado. O cheiro continua. Mais dois passos. Ainda sinto a merda do cheiro daquele sovaco. Caralho mesmo, isso só pode ser pegadinha da minha cabeça. Não tem outra explicação. O jeito é pensar na safadinha do prédio e esperar a porcaria do ônibus. Aposto que ela passa desodorante, no mínimo, umas duas vezes por dia. E, com certeza, toma mais de um banho por dia também. Ô velho sortudo aquele. Eu não me importaria em ser feito de trouxa, nem um pouquinho. Tenho certeza que ele tem outras ninfetinhas espalhadas pela cidade. Imagina só, deve ter uma pra cada dia da semana, todas elas novas, magras, sem bigode e cheirosas. Velho safado. E eu aqui, esperando o Jardim Sul próximo de um orangotango fedido e que não para de me olhar. Maldita ideia de roçar o pau naquilo que eu tive. Já tô me sentindo uma banana de tanto que ela me olha. Cacete... Opa! Acho que é o Jardim Sul. Graças a Deus, é ele mesmo. Só faz a gorda ficar paradinha agora e não entrar, por favor, Senhor. Parece que ela não tá dando bola pro ônibus, ou tá com piolho porque tá coçando a cabeça com uma vontade que te digo. Tô entrando e ela tá parada. Segundo degrau, uma última olhadinha, tá imóvel, feito uma estátua feia. Deu! Obrigado Senhor, ao menos isso! Boa tarde cobrador, pegue meu último vale, eu não me importo, e tenha uma excelente noite. Coma, beba e transe bastante, sem dúvida você teve um dia tão cansativo quanto eu, você merece. Ah! Ainda resta um banco vazio, aposto que existe um arco-íris no céu nesse fim de tarde. Maravilha! Eu poderia cantar nesse momento. Mas é melhor ficar calado né, cantar não é das coisas que faço melhor. Vou me concentrar na paisagem de boca fechada. Às vezes, tem algo interessante. Esse ano eu já peguei dois acidentes e um assalto voltando pra casa. Tudo bem, o assalto não teve tiro nem nada, mas foi um assalto. O cara tava de capuz e tudo. Os acidentes, eu confesso, foram meio sem graça. Num teve sangue, o cara caiu da moto, tava todo esfolado no chão. Se ferrou bonito, foi engraçado. Hoje tá com cara de que não vai ter nada demais, é uma pena. Não vejo a hora de chegar em casa, o Magrela deve tá morrendo de fome. Dei só arroz pra ele de manhã, não tinha mais nada. Pelo menos, lembrei de deixar o portãozinho aberto, na rua ele se vira. Cachorro é um bicho bom porque é esperto, sabe se cuidar mesmo, o meu então nem se fala, se fosse gente faria a barba todo dia e não esqueceria o desodorante, pode acreditar. Semana passada ele matou uma galinha do vizinho, deu um enrosco que só. Quase saí no pau com o vagabundo do Jeremias. Enquanto isso, o malandro tava lá, de barriga pra cima, com a boca cheia de sangue. Nem para comer direito o animal, não tive como dizer pro Jeremias que não tinha sido ele né. Por sorte, enrolei o idiota, nada que uma 7 Campos não resolva. O imbecil já tava tão mamado que nem reparou que a garrafa não tava lacrada. E batizada, é claro... (risos). Ó, última parada antes da minha! Juraria que, se ainda tivesse claro, poderia ver aquele arco-íris. E, se eu bem me lembro, ainda tem meia garrafa de canha lá em casa. Eu veria dois arco-íris agora! HAHAHA Já vou me levantando, é só o tempo de dar uns passinhos até ali, voltar até aqui e... Pronto! Até amanhã simpático cobrador! E não esqueça, coma, beba e transe bastante! Só preciso caminhar duas quadras agora, passar pelo portão, fechar o portão, dar um ‘olá’ pro Magrela, abrir a porta e fechar a porta. Rápido assim mesmo. Comecei a correr depois da primeira quadra, foi rápido mesmo. Só não esperava não encontrar o Magrela. Aquele safado deve ter ido atrás de uma cadela, sem dúvida alguma. É... O jeito é fechar a porta e comer alguma coisa. Melhor, o jeito é fechar a porta e comer sardinha, pois é só o que tem. Fiquei com pena do cão e dei toda a rapa do arroz pra ele. Como eu odeio final de mês... Odeio ser feio, pobre e bondoso também. Acabei com a sardinha em duas bocadas. Tudo pra tirar os sapatos, pegar a garrafa e me sentar. Um gole de cada vez, começa forte e vai, aos poucos, ficando fraco. É como a vida. Sempre penso nisso depois do terceiro gole, incrível. Logo depois, eu já não lembro de muita coisa. É bom que seja assim. Só espero não acordar no meio da madrugada pra vomitar hoje. Aquela última sardinha era minha, pra tristeza do Magrela, não vou vomitar ela. Bem, eu espero.