Separados

Em mais um instante, milimetricamente incontável, ele a viu.
Novamente, como sempre, a passar em frente a sua morada.
Já não lhe parecia mais provocação, psicológica agressão.
Já não o devia ser, impossível, vã devaneio, pensou.
Pensou e quis acreditar. Acreditar... tentou. Apenas.
O caso é que aquele caminhar malevolente, os cabelos negros
que dançam em perfeita sincronia com aquela cintura esquia e os olhos...
Aqueles olhos que como dois sóis quentes e tenros
aquecem uma gélida manhã de inverno,
enquanto o calor e o frio se chocam,
todas as sensações se misturam e o dia nasce em cor.
Colorido.
O fato é que isso o afetava. Sentia como se levasse um tapa em sua face,
uma punhalada em seu coração e o ar que respirava, subitamente, desaparecesse.
Tudo isso ao mesmo tempo. Junto. Colado.
As nove horas de uma cinza manhã de terça-feira.
Ela dobrara a esquina. Seguiu. Ele ficou. Conteve-se.
Não possuía o direito de reivindicar mais nada frente a ela.
Sabia que o tempo trataria de levá-la a dançar em outras freguesias,
ludibriar novas autarquias e, quem sabe, iluminar alguma incauta manhã de inverno.
Ele sabia. Por isso nada fazia.
Ela ia. Queria ir.
Mas passar em frente aquela casa,
rebolar com sapiência e fingir não olhar era tentação demais, luxúria.
Ingrata.
E assim, inverno e verão separados. Como deve ser.

0 comentários: